28 de abril de 2015

Baião

Meu pai gostava de dançar o baião.
Assim que a música começava, sempre Luiz Gonzaga, ele
se levantava e me estendia a mão, em convite.
Embora eu já soubesse de cor todas as instruções, ouvia com alegria
enquanto dançava: "arrastando os pés, vamos lá".
Ele cantava baixinho, acompanhando o cantor, e muitas vezes eu fui
a testemunha daqueles olhos marejados...
"por farta d'água perdi meu gado, morreu de sede meu alazão"...
A saudade não tem ritmo.
É impossível acompanha-la, ou se alegrar com ela.
E hoje, sem meu par, deixei de dançar o baião.
Penso que ele está lá, cantando enquanto me vê:

"...então eu disse, adeus Rosinha
Guarda contigo meu coração..."

11 de abril de 2015

A Senhorinha e as colchas de retalhos

Todos na cidade conheceram a história daquela senhorinha.
Contava-se que nascera em família abastada mas depois de recusar um casamento arranjado entre famílias, tinha preferido viver de forma mais simples, na pequena casa próxima ao rio.

Depois disso, fora professora por muitos anos, e pelas suas mãos de mestra tinha passado a da maioria das crianças da pequena cidade, e com isso acabara se tornando uma espécie de "conselheira", que recebia a todos sempre com um sorriso amável e acolhedor.

Quem passava pela estreita rua de pedras, fosse em dias de chuva ou de sol, podia vê-la sentada na velha cadeira de balanço da varanda, costurando colchas de retalhos com grande habilidade.

Algumas vezes um antigo aluno, já um adulto, vinha cumprimenta-la. Chegava e sentava-se perto dela, no degrau de entrada, e começava a falar da própria vida. Ela ia assentindo com a cabeça, murmurando para que ele "seguisse o coração" ou, dependendo do assunto, que "deixasse nas mãos de Deus".

Muitas moças vinham pedir conselhos para corações partidos e desilusões de amor. Ela ouvia quieta, olhos baixos na costura no colo, até que tudo fosse revelado e as lágrimas esgotadas. Então se levantava, buscava xícaras de chá bem doce, e iniciava uma conversa sobre o poder de cuidarmos de nossas próprias feridas, até se tornarem pequenas cicatrizes e serem esquecidas.

Outras vezes, mães traziam seus filhos pequenos e os colocavam em seu colo. Pediam uma "benção" de saúde, ou contavam proezas que a faziam rir espantada, e os abraçar como se fossem netos queridos, ou filhos que nunca tivera.

Embora muito querida, poucos visitantes chegaram a observar melhor os delicados trabalhos de costura feitos por ela. Por isso não viam a exatidão com que ela cortava cada retalho, depois de uma escolha entre os tecidos separados e guardados segundo uma lógica só dela, e que ia muito além da mera seleção de cores e padrões.

Assim, nunca souberam que cada colcha de retalhos contava uma parte de sua história, e que aquela tinha sido a forma que escolhera para retratar seu passado, e as emoções vividas ao longo dos anos. Ela guardava suas memórias costuradas e bem dobradas, transformadas em uma forma especial de livros, que só ela interpretava.

Em uma das primeiras, feita quando ainda era menina, via-se uma mistura de tecidos alegres: pequenos animaizinhos, flores e frutas nas estampas que escolhera junto com mãe, enquanto aprendia a costurar. Dessa época tinha outras em diferentes tamanhos, todas retratando algo de particular através dos desenhos e cores.

Em uma outra, tons cinzas e desenhos apagados registraram o ano em que perdeu os pais, e a lembravam dos longos meses em vigília ao lado de camas de hospital, em que só a costura lhe deu esperanças.

Uma das prediletas, guardada com carinho em um armário, fora feita com retalhos de tecidos presenteados pelas crianças da escola, e que era uma mistura de desenhos de flores, de todas as cores e formatos.

Junto dela, uma outra inacabada, pois a alegria com que começara, vista na escolha por estampas com corações e rosas, se desfizera com a partida de grande amor.

Ela nunca tinha pensado em se desfazer das colchas, e sempre que terminava uma, a dobrava e guardava com carinho, como a um livro escrito com muito esforço e sentimento, e que ninguém chegaria a ler.

Essa doce senhora ainda vive, e embora mais lentamente, continua a costurar seus retalhos e dar os seus conselhos.
Velha aluna, ainda ontem a visitei e pedi que me abençoasse. Senti nas suas mãos trêmulas uma fé inabalável, e as beijei em sincero agradecimento ao me despedir.

Quando saía, toquei a colcha quase terminada em seu colo, e observei que era de retalhos com desenhos de nuvens brancas, em um céu azul límpido e claro.


(foto Poetas Trabajando)



5 de abril de 2015

Renovada

Tira os sapatos e pisa a areia morna.
Solta os cabelos e abre os braços,
nesta dança com vento e sol.
Corre destemida para o mar,
E mergulha em azul que também é céu.

No abraço de espuma,
ou no beijo respingado de sal,
um batismo de mulher renascida,
que tem na pele o gosto de liberdade
tão grande como o próprio sol,
tão constante como o movimento das ondas.
Neste caminho que recomeça no mar...