22 de novembro de 2017

Noel



Já é quase Natal, e a fábrica trabalha a todo vapor. 

Nos últimos meses tenho me dedicado a ler os pedidos das crianças, e agora falta pouco para atendê-los. Este ano Alabaster, o administrador da correspondência, me apresentou, além das cartas, milhares de e-mails. Foi uma inovação das crianças, e precisei da ajuda dos elfos mais jovens para entender algumas palavras. Alguns pedidos acrescentaram relatos pessoais e fotografias da decoração de Natal em suas casas. Uns poucos resolveram detalhar mais, e anexaram links das lojas onde viram brinquedos e livros para que eu olhasse. Foi cansativo, mas é muito importante atender a todos.

Hoje observei durante todo o dia a movimentação frenética dos meus auxiliares. O sincronismo da produção foi admirável: alguns montaram, outros separaram, e os mais jovens embalaram os brinquedos que entregarei neste Natal. Agora estão começando a levar tudo para o trenó, para que eu possa finalmente partir.

Escutei Mamãe Noel terminando o jantar na cozinha. Ela também esteve muito ocupada hoje, cortando fitas e preparando os lindos laços dos presentes. Ela também conferiu todos os mapas que os elfos navegadores prepararam, e mandou instalar um novo GPS no painel do trenó, para que eu não me perca e possa voltar em segurança. Apesar da pressa, e da enorme quantidade de pacotes, ainda encontrou tempo para preparar nossas refeições. 

Pude ver pela janela que a maioria das renas se abrigou junto ao velho pinheiro do jardim, fugindo da densa neve que caiu o dia todo. Vi Rudolph, a rena mais antiga, um pouco mais à frente. Me encarava com aqueles enormes olhos castanhos, aguardando o chamado para assumir a liderança das outras.

Aproveitei o pouco tempo que restava para me sentar na poltrona perto da lareira. Had, o velho husky siberiano, me acompanhou e se deitou no tapete, aos meus pés. Este ano não o levarei comigo, para poupa-lo do esforço em noite tão fria.

Comecei a pensar na responsabilidade de visitar tantos lares. Nem todos têm a mesa farta e muitos presentes, mas mesmo assim permanecem repletos de fé e esperança. Muitas vezes, em anos anteriores, percebi a dúvida nos olhinhos espertos das crianças maiores, mas não durava muito, depois que viam que seus pedidos tinham sido atendidos. Quanto aos adultos, sempre me receberam com muita alegria, talvez por recordarem de suas próprias infâncias, e por contarem comigo todos os anos, em noite mágica e abençoada.

Já não preciso descer por lareiras apertadas, ou entrar furtivamente pelas janelas. Sou sempre recebido à porta com abraços carinhosos, independente da moradia. Já estive em mansões e casebres, e até mesmo em becos escondidos em grandes cidades, e o espírito natalino sempre esteve lá, nos corações, nos olhos e sorrisos.
Sei que enquanto todos acreditarem, estarei em seus lares, ano após ano. Este é meu maior estímulo.

Há pouco o alarme do relógio começou a tocar, e me levantei com disposição. Mamãe Noel se aproximou com um novo cachecol que enrolou no meu pescoço. “Seu presente”, ela disse. Me lembrei que não lhe comprara nenhum, e envergonhado lhe envolvi em um abraço. Ela entendeu, tenho certeza.

Abri a porta e vi o trenó já preparado, com Rudolph na posição habitual, à frente. Ela também ganhou um cachecol. “Estamos velhinhos, minha amiga” – falei enquanto acariciava seu pelo – “não podemos nos resfriar”.

Já estava acomodado, e prestes a dar a ordem de partida, quando um dos elfos chegou apressado com um pequeno pacote: eram as rabanadas para comer no caminho...

31 de outubro de 2017

Vizinhança



Ele soube que teria problemas com a vizinha logo na primeira semana na nova casa.
Naquele domingo, depois de poucas horas de sono, foi acordado pela voz de um locutor de rádio que parecia estar muito longe dali:
“_ Bom dia amigos do campo, bom dia gente da cidade! Vamos levantar e tomar um cafezinho!”
Então, como fundo musical ao cumprimento, o canto estridente de um galo.
Ele colocou a cabeça sob o travesseiro, na tentativa de voltar a dormir. Foi inútil. Depois de alguns segundos, com o volume ainda mais alto, uma música que ele desconhecia o despertou definitivamente.
Levantou-se, abriu parte da cortina, e espiou a casa vizinha ao lado. Através da janela também aberta viu que uma senhora, cabelos brancos e gestos alegres, circulava pela cozinha. Cantarolava junto com a música no rádio e, ao se virar, seus olhos se encontraram.
Ela abriu um sorriso bondoso, e acenou para ele.
“_ olá vizinho! Lindo dia, não acha?”
Não respondeu. Fechou a cortina com rapidez, resolvido a ignorar a pessoa. Estava visivelmente aborrecido. Mas ao longo daquele dia foi observando sua vizinha pelas janelas e acompanhando a sua rotina. Era algo que não conseguia evitar, por mais que estivesse irritado com o barulho que ela fazia, e com o cachorro que latia freneticamente, cada vez que o via espiando a casa.
Naquela manhã de domingo ela parecia ocupada, entre panelas e portas do armário, que abria e fechava a todo instante. Viu quando preparou a mesa para o almoço e foi para a entrada da casa. Ali ficou por muito tempo, afagando o cão e com olhos fixos no portão, como se esperasse alguém.
Ele foi testemunha da sua decepção, visível no rosto triste, quando depois guardou os pratos postos, dobrou o forro florido da mesa e o guardou na gaveta. O rádio continuava em alto volume, mas ela já não acompanhava as canções, e logo o desligou.
No fim da tarde percebeu quando ela, arrumada e penteada, pegou uma pequena bolsa e saiu de casa. O cãozinho ficou no portão, obediente à ordem de sua dona.
Algum tempo depois ouviu o portão sendo aberto. Chegou à janela a tempo de ver o pequeno terço lhe caindo das mãos, ao tentar abrir a porta de entrada. Foi à missa, pensou. Ao acender as luzes ela o viu à janela, mas desta vez não fez qualquer gesto, e desviou o olhar.
Ele acabou se acostumando a levantar muito cedo todos os dias, despertado pelos ruídos na cozinha vizinha, e o cheiro do café que atravessava as janelas. A senhora era pontual, e antes mesmo do sol nascer era possível ver as luzes acesas e janelas abertas na pequena casa.
Quando ele voltava, ao final do dia, sempre a via alimentar o cachorro e apagar as luzes. Depois tudo silenciava, e só então ele se deitava para dormir.
Aos amigos, ele contava das noites curtas, da senhora inquieta e do rádio que o incomodava. Reclamava da vizinha, e dizia querer se mudar o quanto antes.
Mas para si, embora não admitisse, sentia simpatia pela senhora solitária. Assistiu angustiado a todos os domingos de espera por convidados que não chegaram, e esperava paciente as chegadas após as missas semanais. Achava divertido ouvi-la cantar sozinha, e até já reconhecia algumas músicas.
Algumas vezes, quando sabia que ela não estava, ia até o portão para afagar o cãozinho e admirar o jardim bem cuidado, com a pequena calçada de pedras. Depois voltava para casa e se perdia em lembranças da infância e de sua própria família, agora distante.
Assim se passaram várias semanas. Ele a observando à distância sem, no entanto, tentar um contato. Ela quieta e metódica, mas consciente do vizinho que estava sempre à janela.
Determinado dia, ao chegar do trabalho, ele viu a casa toda fechada. O cachorro também não estava por perto, e não notou qualquer movimento. Foi assim durante vários dias, e ele passou a sentir a ausência da vizinha.
Acordava no horário habitual e ficava no escuro à espera da música, do latido ou do ruído das panelas, mas nada se ouvia. Sentiu falta dos aromas de café e biscoitos. Vigiava as janelas e portão, mas nada mudava.
Foi tomado por uma preocupação crescente. Se lembrou que sequer sabia o nome da senhora, ou de qualquer pessoa que pudesse lhe informar. Começou a compará-la com a mãe, a avó, as tias que não via desde que se mudara do interior.
Passou a dormir mal, acordava ao menor ruído na rua e se levantava várias vezes durante a noite, para olhar pela janela. Passava os dias irritado e cansado, ansioso para voltar para casa.
Só então percebeu como a simples presença dela, na casa ao lado, lhe trazia a sensação de pertencer a algum lugar, de proximidade com alguém, mesmo com os limites que ainda tinham. A falta dela provoca uma sensação de abandono como nunca sentira.
Então, certa manhã de domingo, ainda sonolento, ouviu o latido. Pulou da cama em um salto e abriu as janelas. A senhora tinha voltado!
Podia vê-la andando pela cozinha, abrindo e fechando gavetas como sempre fazia. Sentiu uma grande alegria, e um alívio por perceber que ela parecia bem e animada.
Ficou por ali, indo e voltando à janela, até que ela o viu. Sorriram um para o outro. Quando ela lhe acenou alegremente, ele a cumprimentou de volta.
“Saudades de você!” – ela falou
“Senti sua falta!” – ele respondeu, já resolvido a ir até a casa vizinha.
Feliz se apressou no banho, se vestiu e correu até o portão da vizinha. Sem pensar muito bateu na porta. Escutou o arrastar de sandálias, e a porta se abriu. Ela sorria, como se soubesse que ele viria, e lhe ofereceu ambas as mãos, com carinho.
“_ Bom dia! Acabei de preparar um cafezinho, venha...”
Ela arrumou as xícaras enquanto ele tirava os biscoitos do forno, como se fosse um hábito entre eles.
Antes de começarem a refeição ele atravessou a cozinha e ligou o rádio, pois já estava na hora do programa que ela gostava. Ele imitou o canto do galo para faze-la rir, e se deliciou ao vê-la cantar algumas canções.
Ficou por ali até o final da tarde, depois a acompanhou à missa e a trouxe de volta.
Foi assim por muitos outros domingos, e essa é a história que ele conta até hoje, quando se lembra de sua querida vizinha.

18 de outubro de 2017

Encontrei o Poeta


Ontem, caminhando pela praia, encontrei o Poeta.
Ele vinha devagar, deixando que vento agitasse seus cabelos e a areia brincasse com seus pés descalços.
Não sorriu, mas aceitou minha mão e seguimos juntos, dedos entrelaçados, caminhando lado a lado, dividindo aquele fim de tarde de céu rubro e brisa fresca.
Meu coração batia acelerado, pressentindo toda a agitação interior que ele trazia consigo.
Quando as estrelas chegaram, deitamo-nos na areia úmida para admirá-las. Acima do som do mar, ouvi a sua voz:
_ Já não consigo escrever sobre as estrelas, nem decifrá-las, por isso não consigo acrescentar nada às noites escuras e solitárias. Passo os dias à espera delas, mas quando a noite chega apenas a angústia toma o meu coração. São tantas, e tão diferentes entre si, que minha escrita já não consegue dar-lhes voz.
_ Então vamos ficar aqui – respondi – sob esse céu, saciados apenas com a visão que elas oferecem.
Ali, no silencio, senti que as ondas chegavam, tocando de leve nossos pés. Seu riso fraco chegou aos meus ouvidos.
_ Quando eu era criança- disse -  fitava o céu à espera que uma estrela cadente cruzasse e realizasse meus pedidos. Fiz tantos, e grande parte realmente se concretizou.
_ Acredita então nas estrelas, Poeta?
Ele não respondeu de imediato, e quando falou tinha os olhos brilhantes e vidrados.
_Acredito nas estrelas e nos sonhos que elas guardam. Na esperança que os corações têm de atingi-las, e também na infinita distância de onde me observam.
Um tremor percorreu sua mão. Apertei mais forte seus dedos, lembrando-lhe que estávamos juntos, e eu sempre o apoiaria. O Poeta nunca me pareceu tão frágil, por isso tentei encontrar as palavras certas para aquela conversa.
_E por que precisa tanto delas?
_Para descrever a luz quando o mar se aproxima, e o reflexo que faz brilhar a areia da praia. Sem elas não se vê o arrepiar na pele, provocado pela brisa, ou o amor refletido no olhar do amante que espera. Sem elas meus versos ficam presos à terra, sem sonhos nem voos.
Virei-me para fitá-lo, e percebi as lágrimas que corriam pelo rosto tenso. Me ocorreu que elas também vinham em ondas, como aquele mar.
Senti um frio percorrer minha pele até à garganta, impedindo minha voz. Me faltaram palavras perante aquela dor.
Alí perto soaram acordes de um violão, e minutos depois uma voz iniciou uma canção. Era uma balada de amor, vinda de uma das casas ao longo da praia, e por alguns momentos ficamos ambos a ouvi-la, quietos e pensativos.
Ao final, ele voltou a falar.
_ Até mesmo a música precisa das mensagens das estrelas, percebe? Sem a poesia os corações padecem e se tornam infecundos...
Era possível perceber as aflições do espírito que faziam com que ele respirasse forte, como um gemido surdo.
Foi então que nossos dedos se soltaram, e o Poeta se levantou.
 Não disse adeus, apenas me fitou com a ternura com que os poetas trazem nos olhos, e partiu sem olhar para trás.
Vi seu vulto afastar-se e lamentei a solidão que agora nós dois sentíamos, mas que não podíamos evitar. Ele tinha uma angústia dolorosa, difícil de descrever e, incapaz de suportá-la, perdoei sua partida.
Ao vê-lo já longe, pensei no preço que pagamos por não sermos apenas um, mas sim todos os que somos capazes de viver e interpretar. Uma eterna luta que atormenta aqueles que leem as estrelas ou escutam as ondas do mar.
As suas palavras marcaram meu coração com a mesma força, e da mesma forma com que a poesia sempre costuma fazer, em noites como aquela.