22 de novembro de 2016

Um Natal para George

Era o último mês de aulas para George.
Ele tinha acumulado vitórias naquele ano, ganhando medalhas e elogios dos professores, por ser o mais esforçado e aplicado da sala de aula. Mesmo tendo assegurado sua aprovação, mantinha-se com o mesmo ritmo de estudo, e interesse pelos mais diversos assuntos.
Mas não era fácil para ele. Seus pais eram implacáveis com relação às obrigações do garoto, limitando, inclusive, seus momentos de diversão e convivência com os poucos amigos que tinha. Com horários rígidos, e sob constante observação de babás e monitores, tinha se tornado um menino calado, tímido, e muito solitário. Via os pais durante os jantares de toda noite, em que as conversas pareciam mais relatórios sobre o que tinha feito, e comentários sobre o quanto esperavam dele.
Uma vez por ano, em seu aniversário, recebia a visita daqueles avós que chegavam cheios de alegria, biscoitos e abraços. George sabia que eles moravam longe, e faziam um esforço enorme para nunca faltar àquela essa visita anual, promessa que fizeram quando ele era ainda pequeno demais para entender. Neste ano, eles ficaram poucas horas e partiram com lágrimas nos olhos, depois que ele se agarrara à avó pedindo que ela ficasse e contasse mais uma daquelas histórias que só ela sabia.
George adorava as histórias contadas. Sentava ao lado da avó no sofá, deixando que ela o envolvesse com um dos braços, e enquanto observava as figuras no livro que ela abria no colo, ouvia a voz suave e melodiosa falar de aventuras e heróis mágicos, em mundos que só quem acreditava conhecia. Naqueles momentos, o avô se sentava na outra poltrona acompanhando tudo, rindo com ele nas cenas engraçadas, e arregalando os olhos ou dando uma piscada quando as batalhas nas histórias eram vencidas. Ao fim da história, o livro voltava para a bolsa da avó, mas o assunto era revivido por algum tempo, nas perguntas e explicações que se sucediam entre os três.
Foi então que na escola, chegando ao final do ano, foi apresentado um último tema: o Natal.
A professora explicou os festejos e falou do Menino Jesus, que nascera trazendo esperança ao mundo. Com os ouvidos e olhos atentos, George escutou uma história que ele não conhecia, sobre uma fuga guiada por uma estrela mágica, e um nascimento em uma manjedoura onde os pais humildes passavam a noite. Soube que todos os anos, no aniversário de Jesus, as pessoas comemoravam exaltando bons sentimentos e se mantendo unidas em pedidos de paz e harmonia. Ao final dos trabalhos, todas as crianças ajudaram na decoração da escola, e fizeram um lanche juntos, aprendendo sobre os valores da convivência entre todos. Para alegria geral, cada criança recebeu um livro de presente, onde lindas figuras mostravam a Santa Família e um presépio iluminado por uma enorme estrela.
George ficou especialmente impressionado pela história de Natal.  Passou dias pesquisando sobre o assunto, e querendo saber dos colegas se já haviam participado de algum daqueles “aniversários” de Jesus. Apesar de tão comentado na escola, na sua casa o assunto não foi mencionado. Seus pais eram indiferentes ao sentido da data, embora sempre deixassem um presente no seu quarto, a cada ano. Por essa razão, ele guardara o livro no quarto, imaginando como seria bom mostrá-lo aos avós.
Mas a cada dia, criança que era, foi dominado pela emoção e ansiedade pela data. Um dia antes da Noite de Natal, não conseguindo esperar mais, e com uma habilidade precoce, traçou um plano para mostrar o livro aos avós: aproveitou a saída dos pais e chamou um taxi para levá-lo ao endereço que encontrara na agenda perto do telefone.
Não teve medo, sentia-se seguro usando seu grande casaco de frio e levando o livro de Natal debaixo do braço.
George nunca tinha visitado a casa dos avós, mas ao tocar a campainha daquela pequena casa cercada de jardins, foi tomado por uma grande alegria. Ouviu com prazer o andar arrastado do avô se aproximando, e o grito de surpresa ao abrir a porta. A avó chegou logo atrás, já com os braços abertos para um abraço carinhoso.
A casa era muito simples, bem diferente daquela em que vivia, mas ele percorreu cada cômodo com curiosidade. Gostou das cortinas feitas pela avó, dos livros do avô sobre a mesinha de canto, do tapete aos pés de um velho sofá com almofadas coloridas e de um cheiro irresistível dos biscoitos que recém tinham saído do forno.
Em um canto da sala, se encantou com uma enorme árvore de Natal. Sobre o aparador viu um pequeno presépio, com todos os personagens que reconheceu como os mesmos do livro.
O garoto percebeu que os avós já conheciam a história, e por alguns segundos teve medo que não quisessem ver o seu livro. Muito sério, explicou a razão da visita, e perguntou se podiam fazer um aniversário de Jesus naquela casa.
Bastou uma troca de olhares, para que os avós entendessem tudo. Com o garoto no colo, a avó folheou o livro mais de uma vez, comentando a história contada durante anos e anos, por todos os povos. Depois levou o neto para a cozinha, para que provasse os biscoitos enquanto falavam da festa que fariam.
George se divertia fazendo perguntas o tempo todo. Não percebeu quando o avô fez a ligação telefônica para os seus pais, nem ouviu a longa conversa que se seguiu entre eles.
Mais tarde foi acomodado no quarto preparado para ele anos atrás, e até então nunca usado. Adormeceu olhando para a fotografia ao lado da cama, em que ele, recém-nascido, dormia nos braços da avó sorridente, ao lado do avô e dos pais.
No dia seguinte participou de todos os preparativos para a ceia, e aguardou ansioso a chegada dos pais. Quando todos estavam presentes, insistiu na oração e cumprimentos de todos repetindo a importância da data, conforme aprendera na escola.
Por fim, foi para o colo da avó, levando o livro da história de Natal.




15 de julho de 2016

O Banho de Mar

O menino olhou para o mar, além da extensa faixa de areia da praia.
Já não era pequeno, mas aquela imensidão lhe pareceu desafiadora e inóspita.
Esperou, impaciente, a mãe abrir um tubo de protetor solar e aplicar o creme nos seus braços, rosto e costas.
Escutou, como todas as vezes, as recomendações quanto a força das ondas, a distância de segurança, e o tempo até a volta à sombra. A ansiedade era evidente: balançou os braços, desviou os olhos para o mar a todo instante, deu pequenos passos no mesmo lugar.
E quando a mãe sorriu e acenou com a mão, ele partiu em disparada.
Mas chegar ao seu destino não foi fácil. Nos primeiros passos sentiu que a areia quente queimava cruelmente os pequenos pés, e quando tentou correr afundou os tornozelos no solo fofo e traiçoeiro. Mas era corajoso e perseverante, por isso avançou sem olhar para trás.
Depois de vencer a etapa, parou por um instante e sentiu a brisa salgada e o ar úmido. Por um momento lembrou do pai, aconselhando-o a ser sempre cuidadoso. Pisou na areia molhada e começou a rir, antecipando a vinda da próxima onda. Ela veio com uma força inesperada, derrubando-o em meio a um turbilhão de sal, espuma e areia. Quando pareceu se afogar, levantou-se de pronto, e encarou a próxima. Apesar de resistir a princípio, foi novamente derrubado e jogado com força.
Daquela vez voltou à segurança da areia, fora da água, sentindo o joelho cortado por uma concha e o sal irritando os olhos e a garganta. Mesmo assim não desistiu, novamente avançou para água e se jogou na onda que se formava.
Mergulhou por alguns segundos e reapareceu um pouco adiante. Olhou ao redor, conferiu que tinha conseguido superar a primeira, e mergulhou novamente. Acenou para a mãe e mostrou, de longe, toda sua habilidade. Depois fez vários outros mergulhos, brincou com as ondas, e correu pela linha da água até se sentir cansado e faminto.
Voltou para perto da mãe falando sem parar e descrevendo as brincadeiras.
“eu adoro a praia, mãe, podemos voltar amanhã?”
A mãe o envolveu com a tolha, tirando o cabelo molhado daqueles olhos grandes e inteligentes. Sabia que ele não entenderia todos os seus sobressaltos, desde o momento em que ela o vira se arriscar pela areia quente e mergulhar no mar. Tinha assistido, fingindo estar lendo, ele se jogar nas ondas e comemorar cada vez que ficava de pé.
Algumas vezes tinha corrido assustada pela areia, contando mentalmente os segundos em seus mergulhos, temendo que ele se afogasse. Ao vê-lo em segurança, voltava ao seu lugar.
Sabia que ele tinha criado aventuras, se fazendo de mergulhador, herói e poderoso em lutas no mar bravio e ameaçador.
Mas, acima de tudo, tinha superado um medo inicial e tentara várias vezes até conseguir.
Voltara com mais segurança em si mesmo, e naquele momento esperava uma resposta.
“claro, filho, voltaremos amanhã !”

8 de julho de 2016

Fim do Inverno

Naquele dia, lágrimas de saudade brotaram dos meus olhos.
Primeiro tímidas, silenciosas.
Depois em ondas, incontroláveis e abundantes.
Deixei que rolassem sem barreiras,
e me tornei chuva salgada de dor.
Me joguei em suas janelas com força,
e escorri pelas vidraças que te protegiam.
Te vi imerso em luz, cercado da alegria não pude te dar.
Fui testemunha líquida da sua vida tão longe de mim,
em outros abraços e beijos,
alheio à minha constante saudade.
Então, esgotada, escorri pelo seu jardim
e penetrei no solo para alimentar as raízes de suas flores.
Deixei ali uma promessa de primavera,
como um presente para você,
criado das últimas lágrimas de meu inverno.


4 de junho de 2016

A Colecionadora de Pedras

Ela colecionava pedras.
Começou a juntá-las ainda na infância, quando se sentava na calçada em frente da casa, para brincar com as amigas um jogo alegre, em que as pedras eram lançadas para o alto e acolhidas nas mãos. Para o jogo, eram necessárias cinco pedras, tamanho mediano, e que se acomodavam nas pequenas mãos, apesar da rapidez dos gestos. Ela sempre tinha as melhores pedras, escolhidas entre as muitas que encontrava.
Com o passar dos anos habituara-se a sempre acrescentar mais uma à coleção, que guardava em nichos pelo quintal, entre vasos de flores ou em cantinhos especiais pela casa.
Dizia que não as escolhia pelas cores, ou pelos tamanhos, ou ainda pelos formatos. Eram selecionadas pelas histórias que contavam, mas que somente ela conseguia escutar.
Sendo assim, mostrava as que tinham vindo de riachos, com suas formas arredondadas e lisas. Explicava como tinham sido carregadas por correntezas, e as águas, por anos e anos, as tinham polido até serem encontradas e admiradas.
As pontiagudas protegiam e sinalizavam onde o homem não deveria pisar, dizia. Dessas tinha poucas, preferia deixá-las onde a natureza as colocara.
Gostava daquelas brilhantes, que sempre guardava onde poderiam ser vistas também durante a noite. Para isso tem tantos reflexos, explicava. As escuras, opacas, eram amontoadas perto de plantas pequeninas e frágeis, “para que possam sustentar raízes”, mostrava.
 Mas se alguém pedia que ela escolhesse uma, apenas uma entre todas, seus olhos buscavam uma pequena cesta de palha, onde guardava pedregulhos de todas as cores, encontrados em diferentes lugares. De lá tirava uma pedra com contornos simétricos, incrivelmente esculpidos pelas águas de um rio da redondeza. Passava os dedos pela sua superfície e a mostrava na palma da mão. Tinha o formato de um pequeno pássaro com as asas abertas, e fora encontrada na margem, sobre a areia. Depois de um minuto de reflexão, ela explicava: “não sei dizer se foi um passarinho que virou pedra ao cair no rio, ou se foi uma pedra, que com o movimento das águas e reflexo do céu, se transformou em pássaro para voar...”



12 de maio de 2016

Fotógrafo ou poeta

Eu o vi a caminhar pela praia.
Não olhava apenas para o mar, mas também para a areia,
e as nuvens estavam refletidas nos seus olhos como eram vistas no céu,
nos braços do vento.
Talvez fosse fotógrafo, ou poeta, pois registrava detalhes que outros não viam.
Seus olhos descobriam cores e nuances, e seus dedos percorriam com carinho todas as formas e tamanhos que encontrava.
Seguia contando histórias embriagadas de doce melancolia,
e sua voz pairava no ar por um momento apenas, antes de ser diluída pela brisa.
Fazia paradas, erguia os olhos para o céu, e acompanhava admirado o voo sem limites das gaivotas.
Parecia caminhar sem destino, mas no fim de cada dia voltava ao seu lugar, e
se entregava à dor de tudo ver e tudo sentir, deixando que lágrimas caíssem de seus olhos exaustos.
Nessas horas, não reclamava dos pés feridos por longas caminhadas, mas da rapidez com que os dias chegavam ao fim.
Para que nada se apagasse, escrevia poemas, de todos os olhares que o mundo lhe dera.

Tive um amor

Tive um amor.
Tão meu, que só eu senti.
Tão puro, que não tinha forma.
Um amor profano, viajante, que marcou na alma
dores do coração.
Tive um amor que passou por mim,
e acenou de longe,
pois era só meu, e não seu...

4 de abril de 2016

O amigo

Depois de vários dias de chuva, aquela manhã nasceu luminosa e fresca.
Pude então sair de meu abrigo entre as folhas.
Me estiquei naquela claridade e deixei que o sol secasse meu corpo úmido, até que o calor me estimulou ao movimento, e saí para um passeio solitário.
Ainda era cedo, poucas pessoas passavam apressadas, me ignorando por completo. Atravessei o pequeno parque, cheguei ao velho banco de madeira perto da fonte, e fiquei por ali, vendo a grama verde e crescida.
Eu conhecia bem aquela região. Tinha crescido ali, e era capaz de identificar os moradores e seus hábitos diários. Um pouco antes da metade do dia, um movimento anormal, de pessoas indo e vindo, me conduziu até a última casa da rua. Chegava uma nova família, com muitos móveis, caixas e malas.
Nos dias seguintes, assim que acordava, eu voltava à casa, e em uma das pedras do jardim, esperava para conhecer meus novos vizinhos. Mas as portas permaneciam fechadas, apenas umas poucas janelas eram abertas, deixando que o vento agitasse cortinas brancas, e sons de falas abafadas chegassem ao exterior.
Foi então que, em tarde de calor, fui atraído para uma janela aberta no andar superior da casa. Pensei em chegar até o parapeito, rendendo-me à curiosidade. Com cuidado fui subindo pelos galhos da árvore mais próxima, até ficar frente a frente com as vidraças e poder olhar para o interior daquele quarto.
Um garoto, sentado e apoiado na janela, olhava fixo para o gramado do jardim. Era um olhar triste, pensativo, enquanto os lábios permaneciam cerrados e mudos. Ele não me viu a princípio, por isso me agitei e assobiei com energia.  Percebi o movimento lento das suas sobrancelhas, até que nossos olhares se encontraram, e a enorme surpresa que teve, quando bati as asas e fui até ele.
Nos tornamos amigos, com encontros diários e divertidos. Assim que amanhecia, eu voava até a janela, e esperava sua chegada. Aos poucos fui entendendo que ele vinha trazido pela mãe, que o acomodava em frente à janela, colocava uma manta em suas pernas, e abria os vidros, para que ele pudesse se sentir melhor e observasse o jardim. Depois do nosso primeiro contato, ele sempre trazia algumas sementes para me presentear, e ficávamos ali, um ouvindo o outro, até o sol esconder-se, e eu voltar para meu ninho de folhas.
Certa vez o convidei para irmos até o banco de madeira. Tive de descer e subir várias vezes, para que ele me entendesse, e por fim convencesse a mãe a leva-lo até lá. Sentado naquele lugar, ele tocava o gramado com os pés, podia ver de perto as lindas flores sob as janelas, e sentir o doce aroma das maçãs, acima de sua cabeça.
Esse passeio começou por ser frequente, e por fim se tornou diário para nós dois.
Para animá-lo, eu me escondia em diferentes lugares do jardim, e cantava alto, até ouvir a sua gargalhada infantil, indicando que sabia onde eu estava.
Fui, aos poucos, o apresentando a outros amigos: esquilos, outros pássaros, grandes borboletas, barulhentos grilos e cigarras.
Atraídos pela alegria do filho, em algumas tardes os pais do meu jovem amigo se juntavam a nós, traziam livros e cadernos de pintura e se sentavam no chão. Nesses momentos, eu os deixava e voltava para casa, feliz pela grande harmonia que nascia naquele lar.
Alguns dias atrás, o pai trouxe de presente um pequeno cachorro. Um animalzinho feliz, irrequieto, que pulava e mordiscava as perninhas do garoto, ganhando o coração de todos.

Agora já não brincamos juntos como antes. Vou diariamente até o jardim daquela casa, escolho um dos galhos e fico lá por um tempo. Meu amigo já não precisa tanto de mim, mas seu sorriso nasce fácil no momento em que começo a cantar, chamando todos os outros animais para brincarem com ele...

30 de março de 2016

Dança


Ele reconheceu aqueles sons, que pareciam fazer fluir toda sua energia.
Primeiro tamborilou com os dedos, depois balançou as pernas,
e antes que a música terminasse, girou feliz no meio do salão.
Não viu olhos censores, nem ouviu críticas afiadas.
Em momento único, acreditou que o mundo era só eu,
E nele, o que importava era bailar.
O homem se liberta quando faz por si mesmo
o que o torna feliz.

21 de março de 2016

Depois da Chuva

Quando o sol voltou,
a criança ainda se divertia no quintal.
Chegava perto,
olhava a poça de água da chuva,
via o céu azul refletido,
e pulava para dentro dele.
Ser feliz é como brincar
no céu limpo após a chuva:
pular nas nuvens claras de verão,
escolhendo o azul límpido renascido,
molhando os pés
e esquecendo as lágrimas que molharam o chão.


(foto - Deposit Fotos)

10 de fevereiro de 2016

Tesouro Infantil

Um dia, quando eu era ainda criança, encontrei uma caixa de madeira entre as flores de um canteiro. De imediato me encantei com aquele pequeno tesouro.
Me lembro que na tampa tinha o desenho de uma borboleta azul, já desbotado, e embora estivesse trancada, alguém tinha amarrado a chave na própria fechadura. Tudo isso me pareceu, naquele dia, um sinal de que o dono não se importaria que eu descobrisse o conteúdo, então a levei comigo.
Cheguei em casa com o coração aos saltos, apressada e ansiosa para me trancar no quarto e saborear a descoberta, longe dos olhos de qualquer pessoa que pudesse reivindicar o achado.
Dentro da caixa havia um par de óculos, de armação tão transparente quanto as lentes, muito leve e delicado. Ao coloca-los, tive uma surpresa: eles ficavam quase que invisíveis no meu rosto, e poderiam até passar despercebidos.
Durante o resto da tarde vaguei pela casa, esperando que alguém elogiasse meus lindos óculos transparentes. Ninguém parecia notá-los, mesmo quando eu sorria e piscava insistentemente.
Devo ter dormido com os óculos naquela noite, não me lembro, mas no café da manhã estava com eles sobre o nariz, feliz e confiante. Eu tinha desistido de mostrá-los à família, e como ninguém comentou, passei a acreditar que só eu os podia ver. E passei a usá-los o tempo todo.
Já no primeiro dia, descobri o efeito mágico daquelas lentes: eram capazes de me mostrar o que ninguém mais via – seres encantados, amigos de todas as crianças capazes de sonhar e viver fantasias não imaginadas pelos adultos.
A partir de então, meus dias tinham cor e magia.  Por onde andava, via seres fantásticos, que eu conhecia dos livros de histórias. No jardim conheci fadas agitadas, voando para cá e para lá, em suas tarefas com as flores. Nem sequer se importavam com os unicórnios, que pastavam a grama sem qualquer cerimônia. Ao ir para a escola, um dos gnomos sempre me acompanhava, e ia ditando palavras estranhas pelo caminho. Também conheci os minúsculos homenzinhos que moravam dentro da tomada de meu quarto, e se sentavam nos meus livros de colorir. Eram eles que escondiam os lápis e borrachas que nunca mais eram encontrados.
Tamyra era uma “elfa órfã”, que tinha se perdido dos outros enquanto atravessava a rua. Eu a escutei chorando, e a procurei durante uma manhã inteira, até acha-la encolhida em uma moita junto ao muro. Depois disso, nos tornamos grandes amigas, e ela dormia bem ao lado da minha cama.
Algumas vezes minha mãe entrava no quarto, ou interrompia nossas brincadeiras no quintal, e perguntava com quem eu conversava tanto. Minha mãe não tinha óculos como os meus, por isso não via nenhum dos meus amigos, por mais que eu explicasse para ela.
Vivi anos de encantamento. Todos os dias, logo ao acordar, colocava meus óculos e com eles ficava até o momento de deitar, para que pudesse ver todos aqueles seres lindos e amigos. Com eles aprendi todas as histórias e canções, e também as danças da primavera, que faziam brotar as flores que coloriam nosso jardim.
Mas à medida que ficava adulta, meus óculos mágicos iam ficando pequenos e apertados para mim. Até que eu já não conseguia usá-los, e por não ver os amigos especiais, as conversas e brincadeiras foram se acabando.
Com o tempo já não via as fadas, nem unicórnios ou os outros seres que eram meus melhores amigos.
Guardei os óculos na mesma caixinha de madeira, e a coloquei entre as fotografias de minha infância.
Em algumas manhãs, ainda escuto o bater de asas das fadas sob a minha janela, ou perco pequenos objetos no quarto, mas nunca mais vi meus amigos encantados.

Espero que ainda existam muitos outros óculos, para que toda criança possa, mesmo que por apenas um tempo, ver o mundo com o colorido mágico, e ter amigos fantásticos, como eu tive.

4 de fevereiro de 2016

Amigos - versão II - Rosinha

O nome era Rosa, ou Rosinha, como todas a chamavam. Tinha sido escolhido pelos pais, ambos professores na única escola da pequena cidade, antes mesmo do nascimento.
Menina franzina de pele muito clara, crescera entre livros e cadernos e, contavam os pais, aprendera a ler e escrever sozinha, sentada em um banquinho no canto da sala de aula da mãe.
Enquanto crescia, observou que nem todos os amigos se interessavam pelas histórias fantásticas que ela aprendia com o pai, ou pelos contos de fadas que ouvia da mãe antes de dormir. Se acostumou a brincar sozinha, recitando falas de personagens dos livros que lia em casa, ou se sentando no balanço à beira do rio, cantando canções que ela própria criava.
Na escola fez amizade com Zé Pedro e Bento, os únicos que não a mandavam “brincar com as outras meninas”, e ouviam com atenção as incríveis aventuras de Dom Quixote que ela contava. A caminho de casa, se divertiam com adivinhações e imitações que faziam das pessoas que conheciam.
Quando Bento contou que um dia seria um grande fazendeiro, ela o incentivou, descrevendo tudo que ele seria capaz de possuir: muitas terras, rebanhos e plantações. Mostrando maturidade, o aconselhou a economizar e trabalhar muito, para um dia ter tudo aquilo que queria. Da mesma forma, ouviu com atenção os planos de Zé Pedro, que pretendia ser médico, e teria que estudar bastante e viajar para cidade grande. De seus próprios sonhos, falava pouco.
No último ano da escola, uma tristeza a invadiu. Para continuar os seus estudos, teria que se mudar para a cidade grande, o que naquela época era inviável para sua família, e inaceitável para a maioria dos pais das moças de sua idade. Como não podia ir, teria que renunciar a tudo que queria conhecer e aprender. Então, e para fugir dessa realidade, passou a criar fantasias românticas, em que sua espera seria recompensada por um personagem salvador, com quem ela iria para bem longe.
Nessa mesma época os pais de Zé Pedro morreram, deixando a grande fazenda como herança. Logo após o velório, o amigo lhe confessara que chegara o momento de partir e a convidara a acompanha-lo. Surpresa e insegura, levara pouco tempo para consultar os pais e pedir a benção, prometendo que se casariam na primeira cidade, e, quem sabe, voltariam depois de algum tempo.
A partir de então, a vida de Rosinha se transformou. A cidade grande a envolveu, com suas ruas cheias de gente, lojas e carros. Sem preocupação, deixou que Zé Pedro conduzisse todas as ações:  permitiu que ele adiasse a procura de uma casa, e se hospedarem um bom hotel. Ele deixara os estudos para o ano seguinte. Tinham se divertido e comprado roupas, sapatos e muitos artigos com que sempre sonhara.
Também o casamento ficara adiado, ao contrário do que tinha prometido aos pais. Tudo que se referia à antiga vida, aos poucos fora ficando no passado. As ligações telefônicas aos amigos e mesmo aos pais foram se tornando raras até que, dois anos depois, soubera por acaso da morte de ambos.
Levaram uma vida de diversões por quase três anos, e então o dinheiro acabou. Zé Pedro mudava frequentemente de emprego, procurando assegurar a condição de vida de ambos.
Ela, que nunca trabalhara, e estava despreparada, passava os dias no pequeno apartamento que tinham alugado depois de abandonarem o hotel, relendo antigos livros e assistindo filmes na televisão. Em meio à crise, percebeu que estava grávida.
Depois de uma gravidez com problemas, o filho nasceu em uma noite quente, de um parto difícil e  doloroso. Rosinha o chamou de “Antonio”, mesmo nome de seu pai.
Nos anos seguintes, ela se dedicou integralmente ao filho. E quando ele já tinha idade para entender, ela lhe falava da própria infância no campo, das brincadeiras, no rio e dos amigos. Algumas vezes, Zé Pedro a escutava calado, sentado no canto da sala, com o olhar perdido em suas próprias lembranças.
Nas poucas horas que tinha para si mesma, visitava um pequeno parque próximo, onde se sentava à sombra das árvores, com um dos antigos livros do pai. Refletia sobre o rumo que tinha dado à sua própria vida, e o fim dos seus sonhos juvenis. Ela e Zé Pedro pouco falavam sobre Bento, mas ela sabia que ambos sentiam saudades.
Quando Antonio completou 5 anos, Zé Pedro propôs que voltassem à cidade natal. Naquele dia ela concordou com um aceno da cabeça, olhos fixos no companheiro e o coração angustiado. Sabiam que seria mais do que um regresso. Podiam ver nos olhos um do outro os arrependimentos, e que agora enterravam sonhos.
Um mês depois, juntaram o pouco que tinham e partiram. Ao avistarem as primeiras casas da cidade, deram-se as mãos comovidos. Rosinha já se sentia madura e consciente que naquele lugar iria criar seu filho, onde continuava sendo a sua terra. José Pedro, por sua vez, aprendera muito com os erros, e dentro de si sentia enorme vontade de recomeçar.
Ao chegar, não procuraram Bento. Sabiam onde encontra-lo, mas preferiam se acomodar primeiro, antes de visita-lo e apresentar o filho. Rosinha lamentava agora não ter se despedido do amigo de infância, e tinha receio que a antiga amizade já não existisse.
Ela sabia que Zé Pedro costumava andar pela antiga fazenda, e pelos lugares que conhecia tão bem, mas quando, certa tarde, lhe avisaram que algo tinha acontecido a Bento, ela teve certeza de que os dois estavam juntos. Sabia que o marido se preocuparia com o amigo, e faria qualquer coisa para ajudá-lo.
Nos dias seguintes, assim que acordava e vestia Antonio, caminhavam até a casa da fazenda de Bento onde Zé Pedro tinha passado  a dormir, esperando que o amigo se restabelecesse. Durante todo o dia se empenhava nos afazeres da casa, no preparo das refeições e nos cuidados das roupas do enfermo. O marido cuidava dos trabalhos na fazenda, e todos os dias parecia mais animado com os resultados.
Quando Bento passou a caminhar, e se sentar com Zé Pedro na varanda, nos finais de tarde, ela chegava e se juntava a eles. Não falavam muito do período em que tinham estado distantes, mas  das lembranças da infância, e de aventuras compartilhadas. Aos poucos estabeleceu-se uma rotina na vida dos três, e quando Bento ofereceu um emprego a Zé Pedro este aceitou de imediato.
Foi Bento também que a apresentou aos donos da quitanda na cidade, recomendando que comprassem os doces bolos feitos por ela. Com o emprego e novas amizades, Rosinha voltou  a sorrir e a tecer planos, sentia-se querida e importante. Sempre que conseguia juntar umas economias, encomendava alguns livros ao comerciante que sempre ia à cidade. Ler continuava sendo seu maior prazer, e agora também fonte de muitas informações na sua nova vida.

No último domingo, preparou uma grande cesta com guloseimas para o piquenique à sombra da mangueira, e quando Bento se sentou ao seu lado, com Antonio no colo, fez o convite para que o amigo batizasse o filho. Percebeu que ele segurava lágrimas, embora abrisse um largo sorriso, mas não perguntou a razão... o importante era o valor daquela amizade, que tinha resistido ao tempo e desventuras da vida.

(versão visão de um dos personagens do conto Amigos)

1 de fevereiro de 2016

Amigos


Era um dia quente, e o sol forte tornava ainda mais cansativa a tarefa de Bento. Dirigindo o trator, em lento vai e vem, ele sentia o suor lhe banhar o rosto, enquanto arava o solo fértil e promissor da sua fazenda, à margem do rio.
Trabalhava sozinho, concentrado, sem se importar com mais aquele domingo sem descanso. Não queria atrasar-se, para que a terra já estivesse pronta quando a primeira chuva caísse, então ele poderia se sentar na cadeira da varanda e assistir, tranquilamente, o brotar da plantação, resultado do seu esforço.
Tinham sido anos de muita dedicação, desde que usara todas as usas economias para comprar aquela fazenda. José Pedro, seu amigo, a tinha recebido de herança dos pais, e logo no mesmo mês se propusera vende-la, em troca da liberdade de partir para cidade grande, e deixar a pequena cidade do interior.
Depois do negócio feito, ele correra pela estrada de terra até a fazenda vizinha, ansioso para contar à companheira de infância, mas ela também partira e ele ficara ali, mudo de tristeza e com o coração partido.
A grande decepção o tornara mais resistente e forte, com o coração fechado para qualquer sentimento que não fosse a vontade de trabalhar a terra, e faze-la produzir cada vez mais. Evitava outras companhias, e só procurava os vizinhos quando necessitava de alguma ajuda nas mais tarefas difíceis da fazenda. Aos poucos, esses contatos também deixaram de acontecer, já que os nomes dos antigos amigos eram sempre mencionados nas conversas pela cidade, e então ele logo se afastava.
A amizade entre os três tinha começado na infância, nas brincadeiras nos pomares, nas aventuras pelas ruas da pequena cidade, nas salas de aula que compartilharam, e nas longas conversas, à margem do riacho da região. 
Nas fantasias infantis, cada um era seu próprio herói: José Pedro seria um doutor muito rico, que teria um carro grande e brilhante, e viajaria de avião pelo mundo, para ajudar as pessoas de todos os lugares.
Bento planejava ter a maior fazenda da região, com plantações a perder de vista e uma casa muito bonita, onde viveria com a moreninha mais linda do mundo: Rosinha.
Já ela, sem saber dos planos do amigo, sentada no balanço e trançando os cabelos com ar sonhador, imaginava os lindos vestidos que iria vestir, no palácio em que viveria com seu grande amor, que a levaria para a cidade grande, em algum dia de verão, no futuro.
Eram lembranças que acompanhavam Bento havia muitos anos, e tinham feito dele um homem calado, mas sensível e solidário.
Depois de algumas horas, desligou a máquina e caminhou na direção do rio, na intenção de se lavar na água límpida e fria. Junto da cerca parou surpreso: perto dali, aproveitando a sombra da mangueira junto ao riacho, Zé Pedro pescava tranquilo.
Bento não se aproximou. De longe observou as roupas de bom corte, os sapatos mais finos e a expressão de prazer daquele amigo que nunca mais mandara notícias, mas que agora continuava parecendo inteiramente à vontade naquele lugar que frequentavam quando eram meninos.
Olhou para suas próprias mãos empoeiradas e calejadas, as botinas gastas e sujas, e se escondeu. “Ele agora é um rico da cidade, não precisa trabalhar como eu e pode se divertir o dia todo”, pensou.
Tímido como sempre, retornou ao trator, antes que o outro o visse e percebesse que mesmo sendo o dono da terra, ele nunca tinha sido feliz. O trabalho não lhe trouxera o que mais desejara em todos aqueles anos.
Ao subir no trator, estava profundamente emocionado. Uma dor atingiu-o no peito, e percebeu que caía sobre a terra que tanto amava. Perdeu a consciência sabendo que não tinha medo de morrer ali.
Zé Pedro, no entanto, sem ver o amigo, sentia uma alegria genuína, pescando como fazia na infância. Nos últimos meses vivia em constante tensão, à procura de trabalho, para que pudesse manter a família. Tinha passado por outras cidades, mas acabara propondo à Rosinha que voltassem ao lugar onde tinham crescido, e tentassem retomar suas vidas.
Durante todo aquele dia havia percorrido a fazenda que fora sua, mas sem coragem de procurar o velho amigo. Como iria contar a ele dos gastos impulsivos, que tinham acabado com tudo que ele levara? Deslumbrado com a cidade grande, tinha deixado de lado os estudos e o sonho da medicina, vivendo de empregos temporários, ganhando pouco e com muitos gastos, até que todo dinheiro acabara.
E como falaria de Rosinha, que fora o amor secreto de ambos? Ainda se lembrava do dia em que lhe mostrara o dinheiro recebido pela venda da fazenda, e lhe fizera o convite de leva-la junto com ele para longe. Intencionalmente, não lhe dera tempo para pensar melhor, desenhando o sonho de uma vida nova e confortável para ambos. Quando ela mencionou o nome de Bento, ele disse que já tinha se despedido   e não o veriam de novo.
Ela acreditara e tinham sido felizes por um tempo. Mas depois de tantas dificuldades, aceitara voltar. Tinha a esperança de um recomeço ainda incerto, e quem sabe um lugar para morar, mas perdera o sorriso junto com os sonhos. Passava os dias cuidando do filho pequeno, Antonio, e a possibilidade de cria-lo onde ela mesma fora criada, mesmo sem luxos, já não lhe soava tão ruim.
Com esses pensamentos, Zé Pedro ficou por ali mais algum tempo, até que a proximidade do fim do dia o alertou para voltar. Ao se levantar, porém, uma cena lhe chamou à atenção: o trator, ainda ligado, continuava parado no meio do terreno. “Algo está errado”, pensou. Sem saber explicar porque, correu até lá, sentindo o coração acelerado e preocupado.
Encontrou Bento desmaiado, muito pálido naquele chão revolvido e seco. De imediato trouxe uma água fresca, que ofereceu ao amigo, chamando-o insistentemente sem conseguir reanimá-lo.
Sem perder tempo, levantou o amigo nos ombros e com dificuldade o levou até a casa, pedindo a um vizinho que passava para que trouxesse o médico da cidade.
Nos dias que se seguiram, enquanto Bento se recuperava, Zé Pedro trabalhou a terra sem descanso. E quando por fim as chuvas chegaram, ajudou o amigo a chegar até a varanda, e juntos contemplaram o serviço pronto.
O reencontro trouxe uma vida nova aos três amigos. Depois de um abraço contido, abriram o coração para a antiga amizade.
Zé Pedro aceitou com humildade o emprego que Bento lhe ofereceu, e ambos passavam os dias nos trabalhos da fazenda. Juntos também reformaram uma pequena casa na cidade, para que o casal morasse até poder comprar uma outra.
Rosinha fazia e vendia doces para a quitanda, e aos poucos refez amizades pela cidade. Nunca soube dos sentimentos do Bento no passado, e sentia enorme gratidão pela ajuda do amigo. Trocara os sonhos adolescentes pela vida de esposa e mãe, e se divertia contando ao filho as aventuras dos três amigos na infância.
Aos domingos, ela preparava uma cesta com bolos e frutas, e junto com Zé Pedro e o filho se encontravam com Bento sob a velha mangueira à beira do rio. Lá colocavam uma manta sobre o capim e faziam um piquenique que durava a tarde toda. Enquanto os homens pescavam, Rosinha colocava o pequeno Antonio no antigo balanço e o ensinava a brincar.
Foi em uma dessas tardes, que anunciaram a Bento que seria o padrinho do garoto, selando uma amizade que tinha sido capaz de resistir ao tempo e às desventuras da vida...