13 de novembro de 2015

Hoje


Hoje, aprendi que o tempo
me dá mais tempo.
E um sorriso que não é mais amargo
nem feito da solidão de antes.
Descobri que na janela vejo do alto
um caminho para além do que já conheço.
Depois de tudo, não há memórias
que possam segurar-me mais
no que já não sou.
E descubro-me de novo,
em cada visão que tenho de mim mesma.
Hoje traduzo-me nestas palavras,
rabiscadas em um novo caderno...


25 de outubro de 2015

Neste Natal

Naquele dia, nem mesmo a decoração festiva, ou todos os preparativos para ceia de Natal com a família, conseguiram tirar a incômoda melancolia que ela sentia.
Tinha sido um ano difícil, com as perdas do pai e o marido, os problemas de saúde de um irmão, e as dificuldades financeiras pelas quais passavam. Mesmo assim, insistira na presença da família, convidando pessoalmente cada um, e recomendando que não se atrasassem.
Durante a tarde conferiu mais uma vez a grande árvore de Natal montada na sala. Era a mesma, desde que os filhos tinham nascido, e restavam poucos enfeites, depois de tantos anos.
Quando eram crianças, sentiam enorme prazer em colocar cada ornamento, e tentavam adivinhar o conteúdo dos presentes que dia a dia eram colocados sob a árvore. Agora já eram adultos, chegavam e, enquanto esperavam o jantar, se distraíam com a televisão ou se sentavam por perto dela durante alguns minutos, mas logo se afastavam desinteressados. No Natal anterior, os netos adolescentes, tão envolvidos com seus aparelhos eletrônicos, passaram boa parte da noite silenciosos e entediados.
"Espero que estejam animados hoje", pensou.
Depois de tudo preparado e arrumado, avaliou a pequena sala, conferindo o resultado.
Foi quando seus olhos pousaram na antiga caixa de madeira, na última prateleira da estante de livros. Não se lembrava de quando a tinha colocado naquele lugar, mas sabia que alguns anos tinham se passado, desde que olhara o conteúdo pela última vez.
Com cuidado, pegou o objeto e se sentou na sua poltrona predileta. Antes de abrir, passou os dedos pela pintura desbotada da tampa e a fechadura enferrujada.
Enquanto revia suas relíquias pessoais ali guardadas, deixou-se invadir pela emoção e saudade.
Em meio a antigas fotografias, pequenos brinquedos, lembranças de escola, desenhos dos filhos e cartões, encontrou o maço de cartas infantis endereçadas a Papai Noel, escritas em diferentes anos, e guardadas secretamente por ela. Foi relendo uma a uma, buscando na memória os momentos em que os filhos acordavam falantes, ansiosos para ver se os pedidos tinham sido atendidos, soltando gritinhos de alegria diante dos pacotes.
Mas foi um cartão, feito em conjunto pelos filhos, que provocou lágrimas e uma reflexão sobre o encontro daquela noite. Depois de algum tempo, consultou o relógio, deixou a caixa no sofá, e se preparou para a chegada da família.

Chegaram trazendo alguns presentes e, antes que ela fizesse qualquer comentário, perceberam seus pequenos arranjos.
Na antiga árvore, encontraram alguns dos brinquedos de criança, usados como novos enfeites. Sobre a mesinha de centro, as delicadas cartinhas, de forma que pudessem reconhece-las e manuseá-las. Os lindos desenhos, com figuras de Papai Noel e bolas coloridas, enfeitavam a parede.
Bastou um olhar, trocado entre mãe e filhos, para que a mensagem de carinho familiar e todo o amor que sentiam fosse, de repente, latente entre eles. Juntos releram tudo, contando aos filhos os sonhos de criança, cheios da magia do Natal em velhos tempos.
Ela percebeu, feliz, a diversão dos netos ao escutarem os pais descrevendo as primeiras tentativas de pedalar na bicicleta tão sonhada, ou a grande emoção ao ganhar uma boneca que dizia "mamá", algo que superava qualquer fantasia infantil, naquela época. Comentaram as artimanhas do avô, naquele Natal em que se vestira de Noel, e entrara pela janela carregando um saco de presentes para surpreender os filhos. Com ingenuidade infantil, falaram daquela visita por meses, acreditando que o velhinho visitava todas as crianças do mundo.
Ao se sentarem todos à mesa, ela pediu ao neto mais velho para ler aquele cartão que separara. Embora tímido, o jovem não resistiu ao pedido, e de boa vontade leu as palavras que revelavam uma oração, escrita pelo pai e a tia, quando eram pequenos:

Querido Menino Jesus,
Proteja a nossa família,
para que todos os anos possamos estar juntos,
unidos pelo Amor e Paz.
E que sempre nos lembremos
desta linda noite de Natal!

Depois de um breve silêncio, sorrisos foram se abrindo e um sentimento de grande afeição contagiou a todos.
"O Espírito do Natal" voltou, pensou ela.
Todos sabiam que aquele seria um Natal inesquecível...



13 de outubro de 2015

Eu-árvore

Sou árvore, em um bosque denso.

Nos meus braços-galhos tenho filhos-frutos, que dão sentido a tudo que vivi.

E sustentando meu tronco, tenho raízes-pais, que me ensinaram a enfrentar a vida de pé, mesmo durante os ventos fortes.

Durante as estações perco folhas, para depois ver nascer outras tantas, conforme são tristes os invernos, ou alegres, as primaveras.

Resisto ao tempo, mas não ao machado, e a dor que me corta é a que vem injusta e inesperada, daqueles que não conhecem a seiva que derramo, vinda da força que tenho por dentro.


21 de setembro de 2015

Refugiados

No escrever e apagar das palavras
resta pouco daquilo que me traduz.
Mas me reconheço no reflexo da vidraça
vendo os momentos desfilando lá fora,
ou nessas coisas que acrescentam sentido à vida,
fugazes também,
nas angústias dos rostos que passam,
outras histórias que o mundo traz,
no ritmo estranho de todas as horas.

Em todos os lugares, as trevas
a tristeza dos que são manobrados,
como se não houvesse futuro
ou tempo para discutir.

Sempre jogados, e ocupados
no básico essencial para sobreviver
só depois vem a escolha entre a revolta
e a angústia.

A batalha só existe
quando se tem consciência daquela força
que permite lutar.

Falo da angústia enorme
de não se sentir capaz de conquistar,
e depender de algo que venha salvar
ou migrar para o seguro,
buscando a coragem gigantesca
de apenas fugir...

12 de setembro de 2015

Verso e Reverso

Nos versos, meu reverso.
Para quem me lê,
este sorriso pleno
e o brilho nos olhos.
Para quem me sente,
e abraça minha alma,
o verso do meu reverso.
Esta é a minha missão:
mostrar a poesia mesmo
no desencanto dos dias...


18 de julho de 2015

O Dono do Bosque

Bem ao norte, longe da cidade, existia um bosque. Com árvores frondosas e relva verde, sua beleza exuberante se destacava naquela paisagem, já marcada pelo homem e seus danos à natureza.
Em seu interior havia uma única casa, habitada por aquele a quem chamavam "Dono do Bosque".
Pouco se sabia sobre aquele solitário morador. Contavam que nascera ali mesmo, na casa de madeira construída pelos pais. Meses antes do nascimento, seu pai escolhera uma das árvores, a derrubara, e fizera, com as próprias mãos, um pequeno berço. Depois de pronto, o trouxera para dentro de casa para que a esposa o preparasse para o filho que esperavam. "O berço é o primeiro acolhimento após o ventre da mãe", dissera ele, orgulhoso pelo trabalho.
O menino cresceu sem outros amigos, e sem sair dos limites das grandes árvores.
Na adolescência perdeu a única família que tinha conhecido: primeiro o pai, atingido pela queda de uma das árvores durante uma ventania, e, poucos meses depois, a mãe adoeceu gravemente e também veio a falecer.
Ambos foram enterrados por ele, no pequeno jardim que a mãe havia amorosamente plantado e cuidado a vida inteira.
Desde então, vivia com recursos do próprio bosque e, mesmo sozinho, desenvolveu habilidades e conhecimentos. Acompanhava a troca das estações pelas mudanças das folhas ou pelo vento que soprava, e percebia o ciclo da vida pelos próprios animais que observava: filhotes que cresciam, fêmeas que reproduziam, magníficos pássaros que fugiam sem que ele pudesse evitar.
Nunca buscou outras companhias, e na segurança do seu lugar conversava com os pássaros e outros animais. Diziam que costumava abraçar as árvores, ficando unido ao troco por longos minutos, em conversas e preces que só ele compreendia.
Conhecia cada trilha, cada clareira, e percorrera toda a extensão do riacho, com os pés descalços na água fria e límpida.
Guardava na memória todas as tempestades e ameaças que o bosque sofrera, como aquele grande incêndio alguns anos antes, apagado com a chegada milagrosa de uma chuva que durou três dias.
No entanto, diferente das belas árvores, que renovavam as folhas a cada estação, a natureza não poupou o dono do bosque das agruras de envelhecer.
A cada inverno ele foi se sentindo mais fraco e doente, e já não percorria as trilhas entre as árvores. Também não conseguia se deitar, como antes, sobre as folhas no chão, nos dias de Outono. E quando chegava a primavera, já não tinha forças para chegar ao outro lado do bosque, para ver os ninhos dos pássaros ou as flores daquele ano.
Acostumou-se então a ficar à sombra de um grande carvalho, bem próximo ao riacho, de onde podia observar a entrada do bosque. Não que esperasse alguma visita, mas por sentir necessidade de estar entre todas aquelas árvores.
Tinha arrastado uma velha cadeira de braços largos, e nela se sentava por horas, com os pés tocando a terra fria. Ao seu lado, sobre uma pedra, deixava sempre o livro predileto, já gasto de tantas releituras.
Foi então, muito tempo depois, que em um dos mais quentes verões de que se teve notícia, que algumas pessoas resolveram se aventurar pelo bosque, à procura de um lugar mais agradável que as ruas quentes da cidade.
Se espalharam pelas trilhas, falando alto e espantando pássaros e pequenos animais. 
Atravessaram o riacho e viram uma pequena casa, já gasta pelo tempo, e com aparência de abandono.
Curiosos, caminharam até um par de árvores que se destacavam das outras. Um grande e velho carvalho, que sombreava a maior parte do terreno, e ao seu lado, uma outra um pouco menor, de madeira clara e galhos curtos, cobertos de folhas e pequenas flores.
A composição, do tronco e galhos, provocava uma estranha imagem, que surpreendeu a todos. Observando melhor, compararam o que viam a figura de um homem sentado, que aproveitava a sombra do carvalho para uma leitura ao fim da tarde.

O que eles nunca souberam, foi que o dono do bosque se tornara definitivamente parte dele. Os pés tinham criado raízes profundas e fortalecido o corpo, que se tornou cerne, e aqueles braços que antes abraçavam árvores agora eram galhos com folhas e flores, que abrigavam os novos ninhos de outros pequenos passarinhos que em breve povoariam o bosque.


23 de junho de 2015

Colorindo o Mundo

Um dia, o mundo amanheceu todo cinza e triste. As árvores, as casas, as ruas e os  carros, todos ficaram da cor cinza. Parecia que o sr. Vento tinha soprado pó de cimento sobre todas as coisas.

Quando a menina acordou, olhou pela janela e ficou assustada por ver o mundo tão feio.
Então perguntou para o sol o que devia fazer, mas o sol era apenas uma luzinha amarela, muito fraquinha no céu cinzento, e respondeu­-lhe com uma voz baixinha, vinda lá de cima dizendo:" Ah, menina, você tem pintar o mundo de novo!".

Ela apressou­-se para lavar os dentinhos, o rosto e, ainda antes de comer e ir para a escola, quis deixar o mundo bonito outra vez.

Buscou dentro da gaveta da sua mesa do quarto a caixa de lápis de cor, foi à janela para ver bem como era o mundo, voltou para a mesa e desenhou tudo numa folha de papel. Depois começou a colorir o mundo.

Fez a casa da frente azul outra vez, e a sua boneca voltou a ter cabelos vermelhos como tinha antes do mundo mudar de cor. Também pintou bem branquinho, como um floco de neve, um cachorrinho vira­lata que sempre passava muito sujo, para parecer que tinha tomado banho. Assim, talvez mamãe a deixasse trazê-­lo para o quintal e brincar com ele.

Depois foi pintando as árvores, os carros de todas as cores, as flores dos jardins, uma de cada cor, o céu de azul muito bonito, e o sol de amarelo muito forte e brilhante, como era antes.

E tudo o que a menina desenhava no papel, ia mudando lá fora na rua, deixando de ser cinza e ficando colorido como no desenho. Mas logo a menina ficou muito cansada, porque o mundo era muito grande e tinha muitas coisas para pintar. Ela tinha de ir para a escola, já estava atrasada e não podia pintar mais.

E ela chorou, chorou, até aparecer uma borboleta mágica, que voava para cá e para lá, e que tinha todas as cores do mundo reunidas nas suas asas.
"Voa comigo, que eu te ajudo a pintar!", disse a borboletinha.
"Mas eu não posso voar", lamentou-­se a menina.

Foi então que a borboleta teve uma idéia: bateu as asas rapidinho, para chamar todos os animais do jardim. Logo chegaram o esquilo serelepe, a abelha zum-­zum, os passarinhos piu­-piu e as lagartixas corre-­corre. O último a chegar foi o cágado molenga, muito dorminhoco, que de vez em quando parava, encolhia as patinhas para dentro da carapaça, escondia a cabeça e tirava um cochilo.

Foi uma confusão na janela, porque todos queriam entrar no quarto, e falavam todos ao mesmo tempo. A menina, coitadinha, não sabia o que fazer.

Como ninguém escutava, ela subiu em cima do banco de pedra e começou a gritar: "atenção, atenção", e quando todos fizeram silêncio, a dona Coruja sabe-­tudo, que era a mais sábia, lá do alto da árvore, explicou como fariam para ajudar a menina a pintar o mundo. Distribuiu tarefas a todos e explicou que, se todos fizessem a sua parte, o mundo ficaria bonito outra vez.

"Você, abelha, chama todas as suas irmãs para irem pintar todas as flores, porque vocês já voam sempre, de flor em flor, vai ser muito fácil, não é ? E vocês conhecem todas as cidades e são muito rápidas. Para você lagartixa, vou pedir que pinte os muros, as paredes das casas e as ruas."

O esquilo logo se adiantou: " e eu? e eu?" . "Você, meu amiguinho, vai pintar os troncos das árvores e todos os lugares onde conseguir entrar, porque você é muito esperto!".

Sem nem precisar mandar, os passarinhos já foram pegando os lápis com os biquinhos e bateram as asinhas voando para colorir as folhas das árvores e as nuvens, lá no alto, onde só mesmo os passarinhos chegam.

A menina correu para a escola, aflita porque já estava atrasada e nesse dia havia coisas muito bonitas para aprender.

Mas os animaizinhos continuaram a colorir o mundo.

E assim foi o dia inteiro. Pintaram, pintaram, até tudo ficar colorido de novo.

E quando o sol já estava se recolhendo, amarelinho que era uma beleza de ver, a menina chegou da escola e deitou-­se no gramado verdinho, feliz por tudo estar tão bonito. Olhava o céu, as nuvens branquinhas, as flores em redor, quando uma vozinha baixinha e arrastada a chamou:

“Ei cuidado comigo!”

A menina levou um susto e procurou no meio da grama quem estava gritando. Era a joaninha pequenina, tão vermelhinha de bolinhas pretinhas, debaixo da folhinha de grama.

“Você? Desculpa, não estava te vendo, amiguinha. Suba aqui no meu braço para eu ver como são lindas as suas cores.”

A joaninha veio depressa e subiu, e fez questão de contar: “quem me pintou foi cágado molenga, com um pincel bem pequeninho”

“você ficou bonita!”

Aos poucos os animais foram chegando e sentando perto da menina e da joaninha, para descansar.
O mundo já estava todo colorido de novo.

O jardim ficou cheio de flores, com som de abelhas e passarinhos, e os esquilos pulando por todo lado.

Só quem ainda trabalhava era a borboletinha. 

Pousada numa caixa de lápis, ela sacudia as asinhas e coloria cada um deles, para que depois pudessem pintar todos os desenhos que as crianças fazem.

(conto infantil que inicia uma série de histórias para crianças)
(foto Poetas Trabajando)


28 de abril de 2015

Baião

Meu pai gostava de dançar o baião.
Assim que a música começava, sempre Luiz Gonzaga, ele
se levantava e me estendia a mão, em convite.
Embora eu já soubesse de cor todas as instruções, ouvia com alegria
enquanto dançava: "arrastando os pés, vamos lá".
Ele cantava baixinho, acompanhando o cantor, e muitas vezes eu fui
a testemunha daqueles olhos marejados...
"por farta d'água perdi meu gado, morreu de sede meu alazão"...
A saudade não tem ritmo.
É impossível acompanha-la, ou se alegrar com ela.
E hoje, sem meu par, deixei de dançar o baião.
Penso que ele está lá, cantando enquanto me vê:

"...então eu disse, adeus Rosinha
Guarda contigo meu coração..."

11 de abril de 2015

A Senhorinha e as colchas de retalhos

Todos na cidade conheceram a história daquela senhorinha.
Contava-se que nascera em família abastada mas depois de recusar um casamento arranjado entre famílias, tinha preferido viver de forma mais simples, na pequena casa próxima ao rio.

Depois disso, fora professora por muitos anos, e pelas suas mãos de mestra tinha passado a da maioria das crianças da pequena cidade, e com isso acabara se tornando uma espécie de "conselheira", que recebia a todos sempre com um sorriso amável e acolhedor.

Quem passava pela estreita rua de pedras, fosse em dias de chuva ou de sol, podia vê-la sentada na velha cadeira de balanço da varanda, costurando colchas de retalhos com grande habilidade.

Algumas vezes um antigo aluno, já um adulto, vinha cumprimenta-la. Chegava e sentava-se perto dela, no degrau de entrada, e começava a falar da própria vida. Ela ia assentindo com a cabeça, murmurando para que ele "seguisse o coração" ou, dependendo do assunto, que "deixasse nas mãos de Deus".

Muitas moças vinham pedir conselhos para corações partidos e desilusões de amor. Ela ouvia quieta, olhos baixos na costura no colo, até que tudo fosse revelado e as lágrimas esgotadas. Então se levantava, buscava xícaras de chá bem doce, e iniciava uma conversa sobre o poder de cuidarmos de nossas próprias feridas, até se tornarem pequenas cicatrizes e serem esquecidas.

Outras vezes, mães traziam seus filhos pequenos e os colocavam em seu colo. Pediam uma "benção" de saúde, ou contavam proezas que a faziam rir espantada, e os abraçar como se fossem netos queridos, ou filhos que nunca tivera.

Embora muito querida, poucos visitantes chegaram a observar melhor os delicados trabalhos de costura feitos por ela. Por isso não viam a exatidão com que ela cortava cada retalho, depois de uma escolha entre os tecidos separados e guardados segundo uma lógica só dela, e que ia muito além da mera seleção de cores e padrões.

Assim, nunca souberam que cada colcha de retalhos contava uma parte de sua história, e que aquela tinha sido a forma que escolhera para retratar seu passado, e as emoções vividas ao longo dos anos. Ela guardava suas memórias costuradas e bem dobradas, transformadas em uma forma especial de livros, que só ela interpretava.

Em uma das primeiras, feita quando ainda era menina, via-se uma mistura de tecidos alegres: pequenos animaizinhos, flores e frutas nas estampas que escolhera junto com mãe, enquanto aprendia a costurar. Dessa época tinha outras em diferentes tamanhos, todas retratando algo de particular através dos desenhos e cores.

Em uma outra, tons cinzas e desenhos apagados registraram o ano em que perdeu os pais, e a lembravam dos longos meses em vigília ao lado de camas de hospital, em que só a costura lhe deu esperanças.

Uma das prediletas, guardada com carinho em um armário, fora feita com retalhos de tecidos presenteados pelas crianças da escola, e que era uma mistura de desenhos de flores, de todas as cores e formatos.

Junto dela, uma outra inacabada, pois a alegria com que começara, vista na escolha por estampas com corações e rosas, se desfizera com a partida de grande amor.

Ela nunca tinha pensado em se desfazer das colchas, e sempre que terminava uma, a dobrava e guardava com carinho, como a um livro escrito com muito esforço e sentimento, e que ninguém chegaria a ler.

Essa doce senhora ainda vive, e embora mais lentamente, continua a costurar seus retalhos e dar os seus conselhos.
Velha aluna, ainda ontem a visitei e pedi que me abençoasse. Senti nas suas mãos trêmulas uma fé inabalável, e as beijei em sincero agradecimento ao me despedir.

Quando saía, toquei a colcha quase terminada em seu colo, e observei que era de retalhos com desenhos de nuvens brancas, em um céu azul límpido e claro.


(foto Poetas Trabajando)



5 de abril de 2015

Renovada

Tira os sapatos e pisa a areia morna.
Solta os cabelos e abre os braços,
nesta dança com vento e sol.
Corre destemida para o mar,
E mergulha em azul que também é céu.

No abraço de espuma,
ou no beijo respingado de sal,
um batismo de mulher renascida,
que tem na pele o gosto de liberdade
tão grande como o próprio sol,
tão constante como o movimento das ondas.
Neste caminho que recomeça no mar...




10 de março de 2015

Infância

Ela era ainda muito nova, quando seus pais perceberam seu temperamento audacioso e a mente inquieta.
Única menina entre quatro irmãos, surpreendia a todos quando abandonava as delicadas bonecas, presentes caros que recebera, e corria pelo quintal em barulhentas brincadeiras com os irmãos. Sem sentir medo, subia até os últimos galhos das mangueiras, e trazia consigo doces frutos para ofertar à mãe.
Outras vezes saía a perseguir calangos, para transformá­los em seres mágicos, com quem conversava por horas, antes de soltá­los no jardim.
Algumas vezes voltava para casa com cicatrizes dolorosas: sinais de quedas ou aventuras pela vizinhança. Nessas ocasiões, ouvia de cabeça baixa as infindáveis recriminações dos pais, e aceitava sem rancor o castigo imposto: dias sem sair de casa, em que ficava à janela olhando o jardim.
Mas depois de algum tempo, durante uma tarde com o pai, bastava que o envolvesse pelo pescoço e prometesse se comportar, para que ele cedesse às suas vontades, e de novo a libertasse para o sol do quintal, e inúmeras brincadeiras que aquele ambiente proporcionava.
Até que um dia, a idade de estudar chegou, e os pais decidiram que a menina de cabelos desalinhados, joelhos marcados e sujos, iria, como todas as meninas na época, para o colégio interno. Nem mesmos as lágrimas derramadas, e o pavor estampado nos doces olhos da criança, foram capazes de comover a família.
Quando partiu, deixou para trás todos os sonhos e fantasias infantis, e enfrentou com um mínimo de coragem a nova vida que lhe foi apresentada.
Trocou o quintal pelas salas de estudo, e as brincadeiras pelas orações e tarefas da escola. Aos poucos deixou de lembrar do pomar, dos pequenos animais e as corridas com os amigos. Se esqueceu das flores que colhia e prendia nos cabelos, e da fonte do jardim, onde se sentava e mergulhava os pés na água fria.
E quando, por fim, voltou, já mulher feita, andou pela casa à procura de lembranças. Visitou os quartos, abriu janelas e gavetas à procura de antigos objetos.

Ao fim do dia se sentou perto da janela, e abrindo um pequeno caderno que trouxera consigo, começou a escrever. 

Contou a história da menina que amava a liberdade e o sol no rosto, e vivia em um quintal encantado, de onde não precisava sair nunca, e onde estavam todas as alegrias que uma criança devia viver.


26 de fevereiro de 2015

Peregrinos

Vejo o peregrino, vestido de fé e anseios,
se aventurando em milenares caminhos,
na busca por si próprio.
Para ele não importa a aridez do chão,
ou a solidão dos próprios passos,
em todos os dias e noites 
de sacrifício à alma pelo corpo.
Assim como ele, o poeta se isola,
no anseio de traduzir o que sente
em palavras e versos do coração.
Da mesma forma ele se oferece à obra que escreve,
na religiosa tarefa de se tornar criador,
embora , peregrino, seja,
um caminhante à procura de luz.

Ímpar


Contavam as histórias de amor, que cada coração tinha seu par, e que, mesmo distantes, um sempre encontraria o outro.
Nas histórias, o destino se ocuparia de traçar rotas misteriosas, que sempre levariam aos finais felizes, por isso bastava esperar, e amar.
Por uma vida esperei meu par, e durante a espera, escrevi poemas de amor.
Nas linhas dos cadernos tracei caminhos para mãos dadas, descrevi beijos e criei canções. Nos cantos das páginas desenhei sóis amarelos e brilhantes, que aqueciam peles nuas e livres.  E nos rodapés, fiz longas praias para pés sem pressa.
Em meus poemas falei das estações, das muitas luas e estrelas que contei sozinha, guardando sonhos e desejos para noites que viriam. E quanto mais escrevia, mais me alimentava da ilusão daquele par, que traria no abraço o calor que me faltava.
Até que meus dedos se cansaram das palavras, e os olhos se turvaram sem esperança, deixando que a tristeza visitasse meu coração.
Fechei as janelas e encerrei a música.

E na penumbra da própria solidão, prometi a mim mesma nunca mais acreditar nas histórias de amor...



20 de fevereiro de 2015

Somos todos

Somos todos construídos de partes diversas,
que se agregam ou se soltam,
enquanto caminhamos e travamos lutas.
Partes que nos fortificam, ou nos enfraquecem,
nas empreitadas em que nos aventuramos.
Só uma força é capaz, apesar de tudo, de manter-nos
inteiros: o amor por nós mesmos, e a fé nos valores que escolhemos irradiar.
Por isso mesmo é que somos mais fortes do que imaginamos, e
capazes de superar as mais profundas dores.


4 de fevereiro de 2015

Olhar

Me encanta esse olhar sereno, na mãe embala o filho.
Eu o vejo também nas trocas cúmplices de grandes amigos, 
como naquelas de irmãos e irmãs.
É nas ruas que o percebo,
algumas vezes em almas solidárias  e caridosas,
ou nos seres abnegados, revestidos de fé.
Nos mais céticos, vejo um olhar relutante, 
disfarçado de inveja ou, por vezes, de pura tristeza.
Mas apesar de visível em tantas faces, 
só consigo decifrá-lo em um determinado momento:
naquele em que sou eu a olhar, 
reconhecendo o amor, em sua real essência, 
nos caminhos por onde vou.


26 de janeiro de 2015

O Amor

O amor não procura razões,
e nem dá a elas um valor.
O amor tece seus próprios motivos entre
dias tingidos de  luz,  
e noites de promessas secretas.
Quem tenta entender, 
perde o prazer da descoberta,
e quem insiste em explicar
sente-se vencido, 
antes de  lutar.





Palavras me visitam

Com a chuva, recebo a visita das palavras.
Chegam em pequenos grupos, alvoraçadas,
e se espalham pelo caderno, entre linhas e espaços,
letras e pontos.
Escolho algumas, e as convido para compor um poema,
que possa fazer uma homenagem ao sol,
ou levar à lua uma carta de amor.
Mas, irreverentes que são, me confundem
e desfazem as minhas rimas.

Quisera ter o poder de trança-las, como faço com os cabelos,
e senti-las presas a mim por onde eu for.
Quem sabe olhar no espelho, para vê-las me adornando o rosto,
e me sentir bonita pelo encanto da poesia.

24 de janeiro de 2015

Mundo Escrito

Existe um pequeno mundo, como uma pequena ilha, especial entre tantas que não o são.
É repleto de seres encantados, luminosos e mágicos, que podem  ouvir pensamentos e sonhos, mas que não são capazes de traduzi-los em palavras que o vento possa espalhar pelos horizontes.
Por isso, esses seres, como deuses, criam Poetas ao seu redor.

Chegam disfarçados de pequenas borboletas, ou barulhentos pássaros coloridos. Ou aproximam-se quase invisíveis, misturados  nos sons de águas mansas ou de mares turbulentos.
Só são vistos por aqueles que  conhecem suas linguagens e gestos, e, principalmente, por aqueles que  também têm  uma pequena luz no coração, que lhes permite iluminar passagens secretas e ouvir além do compreensível.

São eles que  sussurram nos ouvidos dos escribas os poemas e  as histórias que viram nascer nesse mundo que percorrem. São memórias de belezas e terrores, de duelos infindos e  romances improváveis, de viagens fantásticas a mundos etéreos.
E  assim, no papel nascem fadas e príncipes, amantes eternos, lutas por amor e batalhas repletas de glórias.

Quando visito a pequena ilha,  leio sempre vários poemas. E em cada um deles, vejo uma parte minha descrita. Somando-os, conheço-me.
Todos são eu.
Penso nesses seres luminosos, sabendo que escutam todos os meus sonhos, e me acompanham em todos os meus anseios.
Talvez me iluminem sempre.
Então volto refeita, qual Poeta alimentada de emoção…





A você, que me inspira

Do que sentes,
faço tinta para a minha pena,
e busco dentro de mim
as imagens dos sonhos que me contas.
Te sigo pelos dias, um passo atrás de cada passo teu,
lendo nas pegadas a aridez do caminho.
Aprendo contigo segredos de viver, e, de tanto guardá-los comigo, sigo mais plena.

E quando mostro a outros olhos o que registrei de ti,
me alimento de novas letras e recomeço a minha sina.
Se tua força me abandonar, os dias serão mais tristes,
e todas as aves voarão em um outro céu,
 em rumos sem sentido,
 de meus olhos contornando lágrimas.


20 de janeiro de 2015

Palavras que escrevi

Um dia, algo, de início bem tênue, se anunciou em meus pensamentos. 
E, incapaz de resistir, alimentei e deixei florescer até que tomou conta de todos os meus planos e sonhos.
Me tornei essa energia, e dela sobrevivi. 
Me transformei na vontade de criar, e aos poucos me cobri de novas cores e palavras.
(A criação não suporta limites, vai desafia-los e combatê-los infinitamente).
E quando o olhar do poeta me indicou a pena, e segurou minha mão, abracei a ideia sem medo.
Escrevi.
Desde então a escrita se tornou minha eterna companhia. 
A cada dia me visto de emoções para encontrá-la, e juntas traçamos linhas e desenhamos sonhos.
As palavras? As palavras que escrevo estão por aqui...no caminho.